sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Maneira de bem sonhar

Maneira de bem sonhar
por Fernando Pessoa

– Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.

– Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.

– Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus atos da vida real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.

Torna-te, para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.

E se alguém te disser que isto é falso e absurdo não o acredites. Mas não acredites também no que eu te digo, porque se não deve acreditar em nada.

Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.

Maneira de bem sonhar
Com este sonhar tudo, tudo na vida te fará sofreres mais, será a tua cruz.

domingo, 14 de outubro de 2007

E é!

E de tristezas e alegrias são feitos os homens
Nem sempre um choro contido
Nem sempre um sorriso no rosto
Mas pela fraqueza que lhes impõe o todo
Sentem com o coração os enganos da razão
Esperando apenas derradeiramente
A compreensão que lhes concede o perdão.

domingo, 26 de agosto de 2007

Banais e incongruentes

Estou perdendo a beleza romântica. É algo como uma doença: nunca se sabe ao certo quando ela começou. Mas esse processo degenerativo se instala e toma conta de nossas forças. A beleza poética de enxergar sorrisos e corações está desaparecendo. Talvez essa praticidade com que as pessoas tratam das coisas esteja, de fato, me envolvendo também. Não parece haver construções poéticas além das minhas próprias. Se existem, devem estar muito bem trancadas nos indivíduos, ou agonizando em corações deveras secos de amor, ou afogando-se em sonhos banais e incongruentes.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Exit Music


Fitou-lhe os olhos, como que recolhida tivesse sua alma ao fundo daqueles poços verde-esmeralda. Jóias que guardavam segredos, reluzentes como uma estrela. Bastava seu cintilar para cegar o amante que, ao toque atrevido e incontido pelo torpor do amor, tinha como resposta a dor.Palavras doces e melodiosas como o sopro que acompanha a queda abissal. Sequer suspirava por alívio, tamanha era sua contenção. Preferia descer em queda livre, resvalando-se entre pedras e barro, deixando por seu caminho o que ainda lhe restava de quente e rubro.Silêncio. Não havia gritos nem carícias. Somente o que se ouvia agora eram seus próprios passos. Não seria difícil conviver consigo mesmo, agora que já sem coração para abrigar sonhos.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Sabores



Podiam inventar um perfume com cheiro de gelatina. Tudo bem, gelatina tem cheiros diferentes, mas todas elas têm um cheirinho em comum. Tudo bem... gelatina sabor framboesa! E, se possível, que arranjem daquelas antigas, guardadas no armário da vovó, pois é daquela gelatina ainda morna que eu sinto o cheiro agora. Ele vem em ondas suaves, cativantes. Anuncia bons momentos. Seria reconfortante poder ter uma caixinha ou um baú cheio dessas pequenas coisas que nos fazem tão bem. Daí era só abrir o cadeado (sim, pois são emoções valiosas) e sentir cada pequena parte de sua vida de volta. Para facilitar, a caixinha teria vários compartimentos. Assim não precisaríamos pegar no lenço cheio de lágrimas para alcançarmos a gelatina ou a fotografia daquele domingo na cachoeira. Um cantinho para carrinhos velhos e sem rodinhas ou para aquela boneca preferida. A lado poderíamos colocar o suco de goiaba ou o bolo de cenoura. Depois de uma brincadeira o melhor mesmo é encontrar outra, e quando a gente é criança até mesmo o lanche vira brinquedo. Em seguida colocaríamos as coleções de figurinhas e mais umas tranqueiras de infância. Depois, faixas de todos os machucados...melhor não, encheria demais a caixinha. Coloquemos só do primeiro dia em que você caiu da árvore ou da bicicleta. Juntaríamos os ingressos de jogos de futebol e cinema. Diários de adolescência também. Foto do primeiro amor, ainda inocente. Depois do segundo e terceiro amores. Cartas apaixonadas e outras angustiantes. Umas tantas lágrimas, pois ninguém é de ferro ou barro. Uns papéis de cola, daquele dia em que você descobriu que o mundo não vai cair na sua cabeça toda vez que fizer algo errado. Primeiras vitórias, mas não se esqueça de algumas derrotas também. Amigos de colégio e faculdade, festas, comemorações. Ah, não se esqueça de muitas risadas. Coloque muitas dessas. Se possível, coloque uma ao lado de cada coisa. A alegria é importante, inclusive na sua própria ausência.
Talvez você precise de mais uma ou duas caixinhas. Melhor mesmo se precisar de várias. Cada qual com seus anos de vida, com tantas vidas, finais e recomeços. Pena que no sacolejo da estrada tudo misture e a desordem tome conta de nossas emoções. Depois do lanche vem a saudade. Depois da brincadeira, a dor. O lenço das lágrimas já esbarrou em tudo, até nas gargalhadas. Melhor que sejam lágrimas de alegria mesmo. E depois da gelatina encontramos o sentimento perdido de poder reviver tantas coisas, sonhar com tantas outras e saber que futuro é o presente visto pelas costas.

segunda-feira, 2 de abril de 2007



Quero me dar amor através de você!
Meu egoísmo é haste da minha tríade vida.
Quero transformá-lo em egoísmo de dois, partilhar o amor próprio e dividir as tristezas só minhas.
Conhecer a ti somente para preencher o vazio próprio, que não sufoca, mas entedia pela falta do que é meu.
Quero te dar algo, meu valoroso e sincero amor, mas quero que venhas de volta para mim com o meu e o seu amor.
Perceber em ti o quanto belo sou, o quanto minhas palavras são bem escolhidas e a exatidão dos meus conceitos.
Arrancar do teu âmago as melhores gargalhadas e, assim, rir da minha própria satisfação.
Esquecer todos os dias ruins, as palavras não ditas e o tempo imaculado que se foi de malas vazias.
Quero a mim mesmo, melhor e regenerado, imortal e revigorado. E quando estiver diante do relógio da vida, desejar de pés juntos para que tenha ponteiros, pois assim poderei atrasar algumas tantas horas, e satisfezer-me de mais deleites pessoais e encantos efêmeros.
Quem dera minha loucura fosse somente minha, expurgo de tantas dores. Meu coração não passaria de mero vate enfeitiçador, mero viajande de desejos comuns. Mas estão por aí as dores que me fazem sofrem, habitantes de habitantes, tolhidas por poucos e propagadas em olhares amorosos.
Não é uma vida o que procuro.

domingo, 25 de março de 2007

Se se morre de amor

Se se morre de amor! - Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n'alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d'amor arrebentar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro

Clarão, que as luzes ao morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D'amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração - abertos
Ao grande, ao belo, é ser capaz d'extremos,
D'altas virtudes, té capaz de crimes!
Compreender o infinito, a imensidade
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D'aves, flores,murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, é não saber, não ter coragem
Pra dizer que o amor que em nós sentimos;
Temer qu'olhos profanos nos devassem
O templo onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis d'lusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!

(Gonçalves Dias)